A Gênese do Projeto
Os passos iniciais foram dados em 1977. Tomando um primeiro contato com o Centro Histórico de São Luís, o espetáculo das velas coloridas do Portinho me pareceu, desde o início, um excelente tema para uma série de pinturas de óleo sobre tela que planejava fazer. Mas, ao mesmo tempo pretendia que essas pinturas tivessem também um caráter de documento e portanto comecei as tentativas de capturar com fidelidade os detalhes construtivos das embarcações. Nos finais de semana, percorrendo as praias da ilha, auxiliado por uma velha câmera fotográfica, fui colecionando imagens de canoas que encontrava pelo caminho. Logo não foi difícil encontrar os melhores locais de concentração e tornei-me assíduo frequentador do Portinho e das praias da Raposa e São José de Ribamar. Daí em diante, comecei a desenhar os modelos tendo como base as fotografias. Difícil tarefa, e os resultados não eram suficientes para produzir pinturas documentais. Fui à Capitania dos Portos em busca de informações sobre projetos navais que, sem dúvida, revelariam os detalhes de que tanto necessitava. Só então descobri que para as embarcações de menos de vinte toneladas era exigida a apresentação de projeto naval.
De novo na praia e já então me aproximando dos carpinteiros navais, fiquei sabendo que eram capazes de construir suas canoas sem projeto. Ou melhor, com um outro tipo de projeto, diferente dos que estamos acostumados. O projeto deles estava “na cabeça”, como gostavam de afirmar, apontando a fronte. As sucessivas conversas com um e outro mestre da "beirada" foram revelando-me que cada qual utilizava seus próprios procedimentos e cada tipo de canoa requeria um método diferenciado, ou mesmo uma combinação de métodos. Além disso sentia uma certa dificuldade de objetivar as conversas. Na verdade não estava conseguindo extrair as informações de que precisava. Limitação minha, que não conhecia a "linguagem" deles.
Neste ponto o trabalho arrefeceu, a primeira tentativa de medir uma pequena canoa foi muito frustrante. Aquilo que me parecia tão simples de início estava-se revelando uma dura empreitada. Entretanto, não queria abrir mão de desenhar os barcos dentro da escala precisa de suas proporções. Além disso, nesse período, estava profundamente envolvido com uma pesquisa sobre monumentos históricos do Maranhão, que por sua vez se transformou em livro, lançado em março de 1979. Neste ponto fui fazer uma visita ao Museu Naval e Oceanografia da Marinha, na rua Dom Manual, no Rio de Janeiro. Na biblioteca encontrei as primeiras referências bibliográficas para orientar o trabalho de pesquisa. Ali estavam, entre outros, o estudo de Pedro Agostinho sobre as Embarcações do Recôncavo Baiano, o livro de Alves Câmara de 1888, denominado Embarcações Indígenas do Brasil, e a Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, que percorreu a região amazônica nos idos de 1783 a 1792, e dedicou algumas páginas de seu compêndio a desenhos de embarcações da região. Este último é, sem dúvida, o mais antigo trabalho sobre o tema já publicado no Brasil.
Durante uma conversa com Aloísio Magalhães, por ocasião de sua visita ao Maranhão no ano de 1979, revelei o meu propósito e falei das dificuldades. Ele, que entre outras iniciativas importantes, havia sido idealizador do Centro Nacional de Referência Cultural justamente para tratar dos assuntos do "patrimônio imaterial", mostrou entusiasmo com a idéia e me sugeriu elaborar urn projeto para buscar os recursos e constituir uma equipe que finalmente pudesse dar conta da imensa trabalheira que seria fazer o registro preciso das embarcações.
Na verdade, quase sem querer, havia aberto uma "janela" para um universo muito grande e rico. Não eram só as embarcações. Afinal, por trás da beleza estética e do colorido das velas estava o desafio de tratar o aspecto mais humano da questão: os operários da construçao naval artesanal, com toda a sua história de vida e dificuldades de sobrevivência. Mais ainda, estava descobrindo pouco a pouco a importância econômica daquela atividade, em função de suas evidentes implicações com a pesca artesanal e outros afazeres próprios de um grande contingente de habitantes das regioes mais isoladas do Estado que dependem das embarca oes como única forma de acesso à capital. De fato, havia e há muita gente vivendo em função das embarcações. Toda a cultura peculiar de uma população cujo cotidiano é regido por um tempo diferente, o relógio das marés.
Temos um fenômeno de amplitude de marés que costuma atingir diferenças de até sete metros entre a baixa-mar e a preamar. E isso é determinante na vida dessas pessoas. Logo não foi difícil reconhecer que se tratava de uma tarefa excessiva para um só pesquisador, considerando ainda que eu podia dedicar apenas os finais de semana e as folgas do meu trabalho cotidiano, já então muito envolvido com o Programa de Preservação do Centro Histórico de São Luís, que naquela época era conhecido como Projeto Praia Grande. Alguns anos se passaram e subitamente perdemos Aloísio Magalhães. Ele estava na Itália quando faleceu, em 1982, defendendo a inclusão de Olinda na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO. Já em 1985, Zelinda Lima me sugeriu que apresentasse o projeto a Renato Archer, ministro da Ciência e Tecnologia do então presidente da república, José Sarney. Ambos, de grande sensibilidade para com os projetos culturais, deram todo o seu apoio à iniciativa. O resultado veio na forma de um convênio firmado entre a FINEP e a Secretaria de Estado de Coordenação e Planejamento do Maranhão – SEPLAN/MA. A partir daí foi possível finalmente contar com uma valorosa equipe para o desenvolvimento do trabalho.
A pesquisa de campo foi iniciada a partir de 1986 e nela procuramos desenvolver o trabalho segundo três principais vertentes. Simultaneamente, focalizamos as embarcações propriamente ditas, os operários navais que as fabricam e os estaleiros artesanais, cenário e palco deste fazer. Durante a pesquisa, passamos a tratar as embarcações como objetos de arte popular, além de principal meio de transporte e de subsistência das comunidades litorâneas e ribeirinhas que atendem a navegação marítima e fluvial e dos grandes lagos, servindo a passageiros, cargas ou às atividades da pesca artesanal.
Luís Phelipe Andrès, 1998 – Livro Embarcações do Maranhão